GASTRONOMIA QUEIROSIANA - Restaurante de Tormes

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Ilustração retirada do albúm de desenhos do arquivo pessoal de Eça de Queiroz e que faz parte do acervo da Fundação Eça de Queiroz

Eça de Queiroz e os Prazeres da Mesa

Ao tentar delinear o Portugal de Eça de Queiroz, (…) esbocei algumas reflexões a respeito da alimentação na ficção queirosiana. (…) o alimento tem sobretudo função social na ficção, uma vez que as personagens raramente sentem fome ou saboreiam especialmente os alimentos. A refeição é pretexto para reuniões familiares ou de maior amplitude, importando sobretudo o estabelecimento, o estreitamento ou o rompimento das relações sociais e afectivas entre as personagens, e a exposição de ideias e sentimentos.

Exemplo disso seria o jantar dos Gouvarinhos, n'Os Maias. Há evidentemente a enumeração dos pratos e bebidas servidos, como é quase inevitável em Eça de Queiroz: a sopa, o jambonauxépinards, a galantine, a sobremesa, regados por vinho, tudo terminando com o café. Mas o jantar dos Condes de Gouvarinho serve principalmente para mostrar a teia de relações que aproxima Carlos e a Condessa, algo esgarçada com as visitas do Maia à brasileira, além de oferecer ocasião para a feroz crítica queirosiana à política, à diplomacia, à ignorância da aristocracia e alta burguesia lisboetas, extravasada no melhor e mais saboroso humor.

Na verdade caracterizam-se os textos queirosianos, nesse âmbito, pela especial ênfase dada aos alimentos e bebidas e, com isso, constituem casos de excepção dentro do panorama geral da ficção. Ou seja os alimentos e as bebidas nos romances  de Eça de Queiroz valem  por si mesmos: mencionam-se e louvam-se os pratos, degusta-se o bom vinho que os acompanha, o leitor encanta-se com a descrição da mesa e compartilha do prazer dos convivas.

Foi assim desde O Crime do Padre Amaro. Ali se destaca o célebre jantar do abade Cortegaça, oferecido por ele aos colegas do clero: o caldo de galinha, a famosa cabidela, invenção ímpar do abade, - «um divino artista», - mais a sobremesa, o quase infalível arroz doce. Como esquecer, ainda, o vinho do Porto 1815? Os debates que acompanharam a degustação do jantar e dão ocasião para a acerba crítica queirosiana ao clero?

Já n'O Primo Basílio, a refeição que merece atenção privilegiada do narrador é, sem dúvida, o jantar em casa do conselheiro Acácio. Brilha em especial o «conselheirismo», porém convivas – e leitores – saboreiam tudo quanto é servido, da sopa à perna de vitela assada. E, como o Alves Coutinho, também se extasiam com as travessas de doces: o creme crestado a ferro de engomar, os ovos queimados, a aletria com as iniciais do conselheiro desenhadas a canela…

(…)

Que o leitor d'A Cidade e as Serras poderá ter esquecido a famosa ceia oferecida por Jacinto no 202 da Avenida dos Campos Elísios, a fim de comemorar o peixe da Dalmácia, afinal encalhado e perdido no elevador dos pratos? Ou o arroz com favas, servido na primeira refeição serrana de Jacinto, capaz de saciar a sua «velhíssima fome»? Mas o que sobretudo encanta o senhor de Tormes não é o arroz, ou o louro frango assado no espeto, nem a salada temperada com azeite da serra, porém o vinho: 'caindo do alto, da bojuda infusa verde – um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo.'

(…)

Inegável, penso eu, após essas rápidas lembranças ficcionais queirosianas, a especial predilecção do nosso autor por alimentos e por bebidas, que faz saborear, sem por um instante sequer desmentir a sua profunda e autêntica vocação de romancista e crítico. Eça consegue entremear a degustação dos pratos e dos vinhos, com a tessitura da trama, a análise da sociedade, a composição das personagens. A densidade e a economia da sua escrita, temperada largamente pelo humor, ora leve e irónico, ora feroz e duro, pleno de sarcasmo, caracterizam o seu estilo. Em poucas palavras revela a sua visão de mundo, em especial do mundo português, o seu conceito de homem, a sua inconfirmação com a realidade, levemente adoçada no final da existência por uma aceitação serena e conformada da vida tal qual. Quando, aparentemente, apenas nos fala de um jantar ou descreve uma ceia, enumera pratos e bebidas, vai subversivamente expondo a sua visão céptica e bem humorada da realidade.

In, Comer e Beber com Eça de Queiroz, Beatriz Berrini, Rio de Janeiro, Editora Index, 1995

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